AINDA SOBRE O SOFÁ -UM OBJETO BIOGRÁFICO

Em abril de 2008 entre  os meus primeiros textos para este blog estava a História de um sofá. Estou repetindo para os que não leram como traço de união para um texto novo de continuidade dessa história.  Aqui vai o primeiro texto  e a continuação.



A História real de um sofá (e de suas três “esposas” – as poltronas) – Versão 2009

Esta história foi publicada em abril de 2008 neste mesmo blog. Já passou por modificações, acrescentei as fotos e como o meu publico leitor agora já é outro, resolvi republicá-la. É uma historia que eu gosto muito porque é um testemunho da minha vida. 
Esse sofá da história tem agora, em 2011 61anos. Foi comprado na casa Pekelman, por volta de 1949-1950, quando mobiliamos com todo o capricho a "mansão" da Avenida D. Pedro I, no Ipiranga.
Neuza -Baile de formatura da FFCL- fev.1952


Na sua forma original, era revestido de adamascado vermelho escuro, como dá para imaginar nas primeiras fotos (ainda em preto e branco porque não existia fotografia em cores). Assim, nessa sua versão primeira, foi testemunha do nosso namoro e depois do noivado. Foi nele que nos conhecemos melhor, que aparamos nossas arestas, que construímos nossos sonhos e que vivemos um amor romântico acompanhado por muita música da época. E a clássica fotografia de casamento também foi nele, como tinha sido a foto da minha “paramentação” para o baile de formatura. 
     




Março de 1952 – Meu pai,minha mãe, eu, Ayrton (ainda meu noivo).Meus pais com 46 e 43 anos, jovens adultos. Ayrton com 25 anos e eu com 22, em plena mocidade.

Uma das fotos de casamento, como não podia deixar de ser, foi também no sofá.
                             

                                Neuza no dia de seu casamento em 26 de dezembro de 1953


Depois, que nos casamos ele nos acompanhou em nossa nova vida.
Ficou com sua primeira aparência uns cinco ou seis anos, agüentando a nós, ao Flavio criança e ao Geraldo meu cunhado, quando morou em casa e dormia nele.
Quando Jurema ia nascer, ele ganhou nova aparência, agora cinza mesclado de branco, reformado na Sears e que valeu muito choro da Flavio quando o retiraram pela janela do apartamento (com 3 anos tinha muito sentido de posse).

Nessa aparência ficou uns quatro anos, com as crianças, agora duas, usando e abusando dele porque era na sala que elas ficavam mais tempo.

Quando nos mudamos para a rua Caativa, em uma casa já nossa, que havíamos construído tijolo a tijolo e que tinha a nossa cara, ele foi mudado de novo, agora em plástico branco (horroroso). Era mais fácil de limpar, mas acabou encardido e logo sofreu nova "operação plástica", agora em tom marrom claro (café com leite escuro), com listras da mesma cor. Ficou mal feito, as listras do assento e do encosto não coincidiam, mas tivemos que conviver com essa "plástica", porque não dava para fazer tudo de novo.

Na década de 70, reformamos drasticamente nossa sala (tinha 40 metros quadrados, de estar e jantar), e tudo foi em tom azul: a parede azul médio, o detalhe em relevo em azulão e o teto azul mais claro. Flavio um tempo até colou estrelinhas. Aí o sofá foi azulão, combinando bem com o ambiente que tinha também a cortina com listras horizontais em vários tons de azul. Ficou bonito.

Com esse aspecto suportou Jurema e Flavio já adolescentes, seus muitos amigos, o namoro único de Jurema e Oscar, e as muitas namoradas do Flavio.

Depois que Jurema casou, e para esperar a chegada do primeiro neto, André, pintamos toda a casa, trocamos cortinas e demos mais uma reformada no sofá (e naturalmente nas poltronas que o acompanham). Voltou a um tom cinza mesclado (parecido com seu segundo aspecto).
Teve suas férias de uns três ou quatro anos, e então recomeçou sua atividade com os netos. Agora quatro, desde recém nascidos o usaram, deitando, derrubando mamadeira, "regando" com xixi e quando mais moleques, pulando sobre ele.
Quando nos mudamos para o apartamento, nova "plástica". Foi cor de mel e assim ficou por 10 anos. Todo o movimento dos netos se percebeu em sua aparência gasta



                                                                   Sofá em 1989


Quando não deu mais, e quando achamos que os meninos estavam maiores e mais cuidadosos, foi de novo ao "hospital" para nova "plástica", agora em gobelin, como eu sempre quis. Desta vez teve que ser recuperado em sua estrutura de madeira e ficou novo, lindo, e forte.
Na foto de 1998 já não está meu pai que tinha  completado seu ciclo vital em 1993


 Minha mãe, eu  e Ayrton em 1998 - Minha mãe com 90 anos (na quarta idade) e nós com 71 e 68 anos, já na terceira idade

Mas, os meninos continuaram sua trajetória sobre ele e foi até preciso usar capas para protegê-lo: adolescentes, são mais pesados, mais descuidados e o usam muito porque estão sempre aqui.
Até 2000 foi testemunha da doença do Ayrton, que passava as tardes e parte das noites "espichado" nele, porque aí que se sentia confortável, ao mesmo tempo que ficava mais perto de mim, participando mais da vida familiar.

Junto com ele, o sofá, sempre fieis, estão as 3 poltronas que passam pelas mesmas "plásticas" que ele. E foram 8 plásticas


Agora, observe as pessoas que convivem com esse sofá: em 1952, estávamos quatro sobre ele, ainda novinho: meus pais com 46 e 43 anos, jovens adultos. Ayrton com 25 anos e eu com 22, em plena mocidade.
46 anos depois, sobre o mesmo sofá, em sua última "plástica", falta um que já se foi - meu pai. Minha mãe com 90 anos (na quarta idade) e nós com 71 e 68 anos, já na terceira idade.
Nós, pessoas, não fizemos nenhuma plástica (contra oito que o sofá sofreu), mas mesmo que tivéssemos feito, não estaríamos muito diferentes do que estamos. O sinal do tempo é evidente e passa muito mais rápido e impiedosamente nos seres vivos que nos corpos brutos.

Nós envelhecemos, "ele" (o sofá) e “elas”, as poltronas, não.

A primeira versão dessa história foi escrita em fevereiro de 2000.
Oito anos se passaram e muita coisa aconteceu.

Logo depois do registro da história do sofá, em março, já não havia mais Ayrton. Ele partiu para outros mundos (ou não). Cumpriu seu ciclo de vida. E o sofá perdeu mais um ocupante.

Sofá em 2000 – só restamos, minha mãe (91 anos) e eu (70 anos)

Durante um tempo - 2 anos precisamente - ele continuou sendo bem ocupado por minha mãe e eu, porque ficávamos muito tempo em casa e certamente ela assistia TV e eu fazia companhia. Nos quatro anos seguintes minha mãe ficou inválida, nunca mais chegou perto do sofá e em 2006 partiu definitivamente.

Agora só estou eu, não sei até quando. 



                                                   2006-Neuza Sozinha


Mas ainda cuido dele. De vez em quando ele tem a visibilidade recuperada porque é a demonstração de um objeto biográfico por excelência. É uma testemunha de TEMPO, VIDA. E MORTE.


                                               
Agora, o aspecto do sofá continua o mesmo, sua “roupa” é o mesmo gobelin, mas ele anda apresentando sinais de “osteoporose” porque sua estrutura de madeira já dá mostras de que está chegando ao fim de seu prazo de validade

Qual será o destino da família sofá + poltronas quando eu não estiver mais aqui para cuidar dela? Não tenho a mínima idéia.


Neste 2011 já é tempo de continuar esta história.


A HISTÓRIA REAL DE UM SOFÁ..... Continuação
No texto original desta história, os últimos parágrafos diziam:

“ Agora, só estou eu sentada nele, não sei até quando (...)  
Às vezes, ele tem a visibilidade recuperada porque é a demonstração de um objeto biográfico por excelência. É testemunha de TEMPO, VIDA e MORTE.

“(...) Qual será o destino da família sofá + poltronas quando eu não estiver mais aqui para cuidar dela? Não tenho a mínima idéia.”
Um fechamento lacônico, piegas e meio triste


Com o objetivo de quebrar essa conotação sofá - tristeza, perspectiva de morte, resolvi continuar a história, principalmente porque  ela retoma  o sofá como participante da vida familiar em aspectos do cotidiano.

Durante o tempo em que Flavio morou de novo aqui com Eliana, ele foi bstante usado pelo casal nas noites em que assistiam filmes ou simplesmente cochilavam. Sala muito mais movimentada inclusive com dois “escritórios “ funcionando, era o lugar de descanso e conversas (deles) . Foram embora e o sofá ficou novamenteo em stand by porque eu raramente me sentava nele.  Sou muito agitada para permanecer sentada muito tempo.

Mas, ao enfrentar o desafio de juntar os meus quatro netos em um encontro aqui em casa, e documentar esse encontro para a posteridade, novamente o sofá se tornou visível porque é o lugar de fotos.  Os quatro  que o conheciam das muitas mamadeiras derramadas, e xixis escapados, couberam bem, mas quando eu quis estar junto a eles, já a bunda do Bruno ficou a metade para fora. (vejam as fotos)


                                  VICTOR –ANDRÉ - EU (NEUZA) – TIAGO - BRUNO

E então o sofá mostra uma vida já na reta de chegada (eu) e  quatro vidas em plena fase de produtividade. Jovens adultos entre  23 a quase 27 anos, são a segunda geração da minha vida e a minha esperança de imortalidade.
                             


Anexo – AS “MESINHAS”


Falha minha.
Escrevi sobre o sofá, sobre as poltronas e esqueci  das duas mesinhas laterais que foram compradas junto e que  acompanharam sempre a familia sofá+poltronas. Faziam parte do conjunto, continuam  sempre e não explico como as esqueci.  No tempo da compra  (1949-50) elas receberam dois abajurs com pé de alabastro  e uma cúpula em cetim cor “sulferino” (é um "rosa choque", fúxia, magenta com um pouco de branco).Aparece bem em uma fotografia de minha formatura em fevereiro de 1952


                                           A mesinha  tem 61 anos e eu 81 anos


Com o tempo foram mudando de função. Serviram de apoio a inumeras coisa e hoje uma dela apoia as flores que sempre enfeitam a foto do Ayrton (sua principal função), o telefone, um livro de anotações pontuais com lápis e canetas  necessários. A outra, recebe pilhas de revistas que precisam ficar à mão e sobre ela uma foto da família, a última em que estão “quase” todos (falta meu pai) mostrando uma reunião de Natal em 1999, último em que Ayrton esteve presente.

Utilidade atual das mesinhas

E ainda no conjunto está a mesinha de centro. Hoje já manchada do muito uso já sem o vidro protetor, não abriga nem vasos, nem enfeites, muito menos toalhinhas.  Até pouco tempo era um "depósito” de livros para serem lidos, muitas revistas em geral de ciência, literatura ou arte (nunca de fofocas de novelas e TV). A partir do momento em que as estantes novas foram colocadas e ficou um balcão  que serve certinho para livros na “fila” de leitura, a mesinha de centro ficou para revistas  que são trocadas continuamente e o jornal (ou jornais) do dia.  Já ultrapassados, os jornais da véspera são colocados no “bacião” (que não faz parte do conjunto) a espera de um descarte semanal 




Desculpem “mesinhas” vou dar mais atenção à vocês porque também são objetos biográficos. Chegaram todos juntos à minha vida há 61 anos e permanecerão nela até quando meu ciclo de vida se completar.
                                               Neuza Guerreiro de Carvalho – julho de 2011




Comentários

andre e rosinha disse…
vo.... naquela foto vc diz que esta sozinha..... vc nunca esta sozinha....lembrese sempre disso....beijos
Célia disse…
Neuza... sua sensibilidade mescla-se com a realidade dos fatos de quem vive para viver a biografia dos sentimentos escritas no coração. Bela sua reflexão de vida! Beijo da Célia.
Fábio disse…
Oi, adorei seu blog, o texto do sofá é lindíssimo.
claudia
Rita Soares disse…
Olá vovó Neuza, primeiramente prazer em conhecê-la, assisti um programa ontem na tv Aparecida, em que a senhora era entrevistada, me senti muito feliz, pois no mundo em que vivemos, não nos resta muitas coisas boas na tv, parabéns pela sua força, jovialidade, modernidade de pensamentos. Quero ser sua amiga, e sempre passarei aqui para te ver.
Agora, este texto, até chorei ao lê-lo, diante de tanta sensibilidade, muito tocante, amei! bjs no seu coração, e como alguém aí em cima comentou a senhora nunca está sozinha. Jesus está contigo.
Alarcon Agra do Ó disse…
D. Neuza.
O seu blog é de uma inteireza que dá gosto. Aprendo bastante com suas histórias, com suas avaliações da paisagem cultural de São Paulo etc. Mas devo dizer que o texto sobre o sofá, me pegou de jeito. É uma aula daquilo que, na universidade, chamamos de história das sensibilidades ou de história da cultura material. Seja feliz, D. Neuza.
Abs.
Alarcon.

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