PARA MINHA MÃE
Minha mãe cumpriu seu ciclo vital há 6 anos. Sua neta, filha duas vezes escreveu sobre ela e estou transcrevendo seu texto. É bonito demais para ficar guardado.
Eudóxia Navarro, conhecida
por todos apenas como “bisa”.
Com
seus quase 100 anos de vida, viveu realidades
e
transformações
incalculáveis.
Assistiu
pela televisão
os protestos estudantis com
participação
de seus netos.
Assistiu
a chegada do homem à lua.
Foi
fotografada pelas primeiras máquinas existentes, e pelas máquinas digitais.
Pode
ver seu bisneto pelas poderosas WebCams.
Festejou
a descoberta da vacina contra a poliomielite, mas se entristesseu com a chegada da Aids.
Foi
uma das primeiras mulheres a votar e viu o impeaciment de Collor.
Passou
por onze mudanças de moeda.
Assistiu
todas as Copas do Mundo e comemorou todas as vitórias do Brasil.
Viu
o Brasil ser campeão,
bi-campeão,
tri-campeão,
tetra-campeão,
penta-campeão.
Mas
infelizmante não
viu o hexa título.
Viveu
num Brasil de 70 milhões de habitantes em 1970 e
num Brasil de 180 milhões em 2004.
Viu
o mundo passar de um contingente de pouco mais de um bilhão e meio de
pessoas
para mais de seis bilhões e meio nos dias atuais.
Se
assustou com a Revolução Sexual, pois fazia sexo
debaixo das cobertas.
Se
assustou ainda mais quando soube dos bebês de proveta e dos clones de mamíferos.
Muitas
histórias
confirmam a mudança de comportamento,
mudança
de pensamento, e mudança de hábitos.
Dormiu
em colchões
de algodão,
de crina de cavalo, palha de milho desfiada,
barba
de bode, capim e paina.
O
arrumar da cama com esses pesadíssimos colchões se tornava mais difícil
ainda
pois, sobre eles pousavam lençóis de algodão que deveriam ser lavados,
alvejados,
engomados e passados com ferro à carvão.
Dormiu
nos modernos colchões de mola, nos colchões de espumas sintéticas,
sobre
lençóis de tergal.
Hoje
repousa em colchão especial chamado “casca de ovo” para que nesses
quase
quatro anos que permanece acamada não provoquem escaras.
Cozinhou
em fogões de carvão, espiriteiras à alcool, fogões elétricos,
à gás e em micro ondas.
Escutava
as primeiras músicas
em rádios de
galeno
e
hoje pode escutar CDs de músicas digitalizadas em MP3.
Namoro
na sala, com a presença dos pais, apenas contando com pequenos
bilhetes
passados às escondidas.
Casou
virgem mas não
se assustou com sua neta casar grávida.
Hoje
aceita a relação
pré matrimonial de seus bisnetos.
Certamente
suas primeiras letras foram escritas com canetas de madeira
e penas
de aço, mas conheceu a famosa Bic escrita fina.
Hoje
pode ver as letras virtuais escritas à milhares de quilômetros,
digitadas
em algum teclado de computador, aparecerem
nas telas de cristal líquido.
Foi
uma das primeiras a comprar geladeira.
Uma
das primeiras a tirar carta de motorista.
Ficou
feliz com a invenção do papel higiênico e da televisão.
Usava
as incômodas
“toalhinhas” que eram lavadas às escondidas,
mas
conheceu os absorventes aderentes à calcinha.
Viu
o Cometa Halley duas vezes.
Festejou
a queda do muro de Berlim.
Escapou
das bombas das Revoluções de 1924, de 1930 e de 1932.
Viveu
duas Guerras Mundiais.
Viu
a grande explosão das Torres Gêmeas de Nova York.
Passou
96 natais.
Casou,
casou
uma filha,
casou
dois netos,
casou
dois bisnetos.
Sepultou
seus pais,
sepultou
outra filha,
sepultou
seu marido,
sepultou
seu genro,
sepultou
todos seus irmãos.
Comemorou
Bodas de Prata e Bodas de Ouro.
Conviveu
e convive com seis gerações.
Viveu
mudanças do mundo jamais imaginadas pelos
primeiros
familiares perdidos no tempo.
Seus
ascendentes e familiares eram de
origem espanhola,
Província de Vera, Almeria,
Região de Andalucia - sul da Espanha -
Mas
seus descendentes são todos brasileiros:
duas
filhas, dois netos, quatro bisnetos.
Hoje,
agosto de 2006, Eudóxia está
se apagando aos pouquinhos.
Está
há mais de três anos acamada.
Nos
primeiros tempos lúcida e participando de muitas coisas.
Hoje,
com dificuldades de audição, de visão, dificuldades motoras.
Está indo embora pra junto de
seu companheiro de mais de 60 anos.
Pouco
fala, mas ainda consegue exprimir seu desejo de viver outras aventuras.
Devagar
está
encerrando suas atividades no Planeta Terra.
Está se desincompatibilizando
com esse mundo...
Mereceu
atenção
especial pois conviveu com seis gerações,
tendo
a sabedoria de adaptar-se a todas elas.
Agradecimentos
especiais à Doralice e Cida,
que
cuidam da bisa com a máxima atenção possível.
Agradecimento
maior ainda à minha mãe, que por ser filha única,
carrega
todo o peso da responsabilidade dos cuidados e atenções.
À
Wilsão,
mais
conhecido como Dr. Wilson Jacob Filho,
Chefe
do Departamento de Geriatria do Hospital das Clínicas de São Paulo,
que
certamente aprendeu muito de sua profissão
com
os ensinamentos dessa “moça bonita”,
e
que a acompanhou desde os primeiros tempos de formado.
À
equipe do NADI,
que
conseguiu dar mais que remédios
fazendo
crer que a melhor medicina se faz com carinho.
Um
pedido especial
Incluem
na Equipe de Geriatria do Hospital das Clínicas de São Paulo
alguns
“escutadores de histórias”
para
que tantos outros tenham oportunidade de saber
que
são eles os
verdadeiros
“protagonistas da história”,
e
que sem a sabedoria e conhecimento deles,
não seria possível entender o pensamento
e as emoções
de
quem viveu uma época que nem sonhávamos viver.
Usem
os conhecimentos adquiridos,
indistintamente
à todos que necessitem,
independentemente
de quanto dinheiro conseguiram acumular em suas vidas,
quantos
títulos de
estudo tenham,
à
que classe social pertençam,
à
cor de suas peles, às crenças religiosas,
aos
partidos políticos, aos times de futebol que torçam, às linguas que falam.
Bisa encerrou suas
atividades no Planeta Terra
aos
4 de outubro de 2006, às 13:15 horas.
Foi sepultada no mesmo
cemitério que seu companheiro de 67 anos, em São Roque.
Atendendo à um pedido
especial dela
foi possível colocar seu
companheiro João ao seu lado.
Agradecemos a presença dos
familiares e amigos
Estavam presentes no
velório em São Paulo
Sua filha Neuza e seus
netos Flavio e Tania
seus bisnetos Bruno e Tiago
Cida e Doralice, Victor e
Vera, Horácio e Fátima
Fernando Aurélio, Alberto e
Aldair, Fátima
Seu sepultamento foi em São
Roque e estavam presentes
os principais
representantes da pequena família da bisa
Sua filha Neuza e seus
netos Flavio e Tania
Seus
bisnetos mais jovens Victor e Adele
Cida e Cristina
Seus netos Jurema e Oscar e
seus bisnetos André e Rosinha
acompanharam tudo há 11.000 km de distância
Comentários
A Bisa merece todo o carinho, neste ou noutro plano. Um abraço!