SECAS E INUNDAÇÕES

Na sequência da publicação de Paula Janovitch do versaopaulo  e comentando o livro de Afonso Schmidt  “São Paulo de Meus amores”.

O livro de Afonso Schmidt “São Paulo de meus Amores” publicado em 1954 tem nada menos de 106 crônicas, umas pequenas, outras maiores sobre a cidade cuja “grande marca está no colorido engenhoso dos painéis animados com que elas retraçam itinerários perdidos na cidade que mudou.”
De tempos em tempos vou transcrever um deles e hoje nada mais adequado daquele que Paula cita parte, e eu transcrevo.


SECAS E INUNDAÇÕES – São Paulo dos meus Amores - Afonso Schmidt (1890-1964)
Transcrição na íntegra da edição de 2003 pag. 131
Nos anais do século assado, as estiagens se revezavam com as enchentes. Ficou na história da cidade a tempestade de 1º de janeiro de 1850.A chuva foi tão copiosa que fez transbordarem os tanques Reúno e do Bexiga, atirou para fora do leito o romântico Anhangabaú, destruiu doze casas, botou abaixo a ponte da Abdicação, situada ali pelas alturas da Praça do Correio, e ocasionou três mortes, além de muitos prejuízos públicos e particulares.

Em contraposição, quinze anos depois, em 1865, a seca foi tão brava que as águas minguaram no Moringuinho, no Zuniga e no tanque do Bexiga. Esse tanque do Bexiga abastecia parte da capital da Província mediante canos feitos com massa de papelão, ligados entre si por aros de ferro. Naqueles dias desapareceu das ruas o aguadeiro que vendia o magno liquido a quarenta réis o barril. As torneiras dos chafarizes do Rosário e da Misericórdia recusaram-se a encher os potes de barro das negras minas. Então, os leais paulistanos, munidos de cacetes, desancaram os pobres chafarizes da cidade, como ficou documentado num desenho do admirável Ângelo Agostini.

Muitos ainda guardam na lembrança os aspectos da seca verificada nos anos que se seguiram à Revolução de 1924”. Naqueles dias, os anunciantes de casas para alugar tinham o cuidado de acrescentar: “com água na torneira””. Isso não passava de uma piedosa mentira, pois todos sabiam que as torneiras, tendo esquecido a primitiva função de verter água, tinham sido transformadas em cabides, ou mesmo em enfeites de cozinhas. A represa de Santo Amaro já não passava de um pasto. Na parte mais funda, estendia-se uma lagoa choca e espessa, que mais parecia tijuco preto, e por toda a extensão que a vista alcançava não havia mais do que erva esturricada, onde retouçavam os animais.

Como consequência da seca, enfraqueceu a energia elétrica, entraram em voga os lampiões de gasolina para substituírem as lâmpadas onde quer que a luz faltasse, ou apenas esmorecesse. Durante meses os bondes interromperam o tráfego às 23 horas, para desespero dos que ganhavam cada noite o pão de cada dia. 

Mas a estiagem não impediu que caíssem chuvas grossas, e os bairros ribeirinhos do Tietê fossem atingidos por inundações. Altas horas da madrugada bombeiros eram chamados a salvar famílias que a enchente havia assaltado, isolando-as em suas próprias casas. Os bueiros das esquinas tragavam crianças. Lá para as bandas do bom Retiro, ou de Vila Maria, as ruas se transformavam em rios e as praças em vistosos lagos. Nas águas escuras, vagavam embarcações improvisadas, transportando gente que ia e vinha do trabalho.

Isso não aconteceu num qualquer ano, mas anos a fio. Tal é, como se vê, a inconstância do tempo em São Paulo. Ou oito ou oitenta. Ou faz sol de mato pegar fogo, ou deita chuva até cachorro beber água em pé.”
Crônica escrita em 1954


Imagem da seca em São Paulo em 1865

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