AYRTON...VISTO POR MIM


É um retrato de vida.

Escrito por mim, Neuza, sua companheira de 46 anos, pode soar piegas, mas é a visão de quem só o enxergou com os olhos do amor, de um grande e profundo amor. Sou suspeita em minhas considerações, parcial com certeza, mas é um direito que tenho de escrever o que sinto e penso sobre ele.

Nossa vida foi simples, comum, mas rica em sentimentos e plena de realização emocional. Não tenho dúvidas que o mérito coube todo ao Ayrton. O que hoje eu tenho de bom, me foi passado por ele, que com sua paciência e tolerância me foi mostrando o jeito certo de viver.

Suas qualidades foram tantas, que não consigo acabar de listá-las. Foi antes de tudo uma pessoa sempre igual, sempre coerente em suas atitudes, sem picos de depressão ou euforia, e por isso foi muito fácil conviver com ele.

Para retratá-lo, tenho que falar sobre sua maneira de ser, suas qualidades. Não me lembro de defeitos, e se existiram foram completamente ofuscados. Deve ter tido seus pequenos defeitos, era humano, mas eu não os via.

Desde sempre Ayrton foi uma pessoa que sempre pensou mais nos outros do que em si mesmo. Era o oposto do ser egoísta. Sempre seu próximo era o importante. Ele vinha depois.

Aceitava as pessoas como elas eram, desculpava os defeitos e exaltava as qualidades.

Teve sempre um gênio especial, calmo, paciente, tranqüilo. Transmitia paz aos que lhe eram próximos.

Sabia ouvir como ninguém. Ouvia muito mais do que falava e por isso foi o amigo ideal. Assimilava o que ouvia e quando dava suas opiniões elas eram claras, concisas e objetivas.

Prestativo, participante e sempre presente em qualquer situação, não poupava a si próprio em benefício dos que lhe eram caros.

Sempre atento às qualidades das pessoas, encobrindo e desculpando deslizes.

Sua tolerância com tudo e todos era fruto de sua inteligência privilegiada, racional, sabendo contornar situações. Nunca julgava as pessoas. Sempre procurava explicações para as atitudes.
Como profissional foi correto, ético, competente, responsável . Com garra fez sua vida familiar e por seus próprios méritos conseguiu seu status. Caprichoso, com grande habilidade manual e sensibilidade artística, deixou sua marca entre os clientes. Na vida familiar, também, o que fez sempre foi bem feito.

Íntegro nas suas ações e coerente com sua filosofia de vida, e em suas crenças (ou ausência delas), nunca teve dúvidas ou angústias sobre aquilo que pensava. Tentou até racionalizar seu ateísmo convicto, procurando explicações fisiológicas para isso. Documentou isso.

Não tinha nenhum tipo de preconceito, tratando da mesma maneira o branco, o preto, o pobre o rico, auxiliares, empregadas, colegas.

Aceitava e compreendia a ignorância inevitável dos seres mais simples, mas a burrice realmente o irritava.

Por sua própria profissão era ordeiro e me ensinou a também ser. Sua veia gozadora e de certa maneira irônica, herdada do pai, aparecia quando queria me atazanar: dizia que as coisas tinham que ser feitas uma por vez para serem bem feitas e não como eu as fazia, atropelando tudo, fazendo tudo junto e sempre mais ou menos. Dizia isso sempre com humor, nunca com agressividade. Conseguiu me levar a um meio termo e assim nos equilibramos.

Defendia suas idéias com argumentos sólidos, claros, dos quais dificilmente abria mão.

Para os amigos sempre dedicou amizades desinteressadas, porque sinceridade era uma de suas normas de conduta.

Sempre foi discreto, silencioso, mas atuante em qualquer campo.

Seu respeito às pessoas, sempre se fez sentir e por isso foi também respeitado.

Por tudo isso foram sempre admirado e querido por todos os que o conheceram.

Mas foi, sobretudo um ser emocional, e sua afetividade é que o caracterizava em família.

Seu gosto artístico herdado do pai e sempre se manifestou no apreço à beleza de um por do sol, de uma linda paisagem, uma bela música. Identificava-se musicalmente com Tchaikovsky que sempre ouviu muito. Seu ouvido sensível apreciava cada nota da boa música. A pouca visão já o estava privando desses prazeres estéticos, só lhe restando ouvir. Até nisso foi sensato: escolheu o momento certo para ir, enquanto ainda vislumbrava algo em seu entorno.

Foi amoroso o quando se pode ser. Espalhou seu amor por todos e por tudo e viveu rodeado de amor. Não um amor piegas, pegajoso, cansativo, mas um amor consciente, sentido e percebido nos menores gestos.

Como marido, foi o companheiro perfeito, aceitando, tolerando meus defeitos e sempre me incentivando em minhas ações, confiando sempre em meu bom senso. Foi o responsável direto pelo meu equilíbrio emocional e a serenidade com que cheguei aos meus 70 anos. Foi um amante ardente, delicado e sensível e vivemos plenamente a nossa sexualidade sadia. Realizou meu sonho de moça, que, como escrevi há 48 anos era sempre estar com ele, cuidando dele e lhe dedicando cada minuto de minha vida, direta ou indiretamente.

Como pai esteve sempre presente e atuante na formação dos filhos legando-lhes seus conceitos éticos, sua retidão de caráter, sua postura racional, sua responsabilidade e honestidade, seus códigos morais. Sempre acompanhou as mudanças sociais com serenidade nunca criando, ou pelo menos minimizando os inevitáveis conflitos de gerações. Aceitou convictamente o comportamento as vezes avançado dos filhos.

Como avô também foi especial. Sempre ao lado dos netos, entendia como ninguém o comportamento de cada um, e respeitava as diferenças, tratando-os sempre de acordo com suas personalidades.

Deixou aos netos características diferentes, mas um pouquinho de si em cada um.

Ao André deixou sua calma, sua bondade, seu jeito carinhoso.

Ao Bruno seu jeito mais calado, observador, conciso até em suas demonstrações de carinho.

Ao Tiago seu senso de humor, seu lado mais jocoso.

Ao Victor sua esperteza, inteligência imediata, a ironia e o sarcasmo dos Carvalho, temperado com a agilidade de pensamento.

Como amigo, sempre dedicou sentimentos incondicionais de compreensão e solidariedade.

Grande companheiro, Pai superlativo, Avô como poucos, amigo querido.

Viveu dignamente e se foi da mesma maneira, poupando-nos até de seus sofrimentos finais. Foi tão tranqüila e serenamente como sempre viveu.

Sigo para frente, na continuidade de nossa vida, honrando tudo que ficou dele, procurando ser a depositária e transmissora de seus ideais de vida.

Adeus, meu grande e querido amor. Um adeus material, porque tudo estará sempre dentro de mim .

10 de março de 2000, oito dias após o falecimento de Ayrton de Carvalho


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