SÃO PAULO DE DANTES
Este texto “roubado” é atual. Foi escrito hoje mesmo por José de Souza Martins que apesar de aposentado, professor emérito da USP, continua gerando textos, alguns com memória de uma cidade de dantes.
Este de hoje foi transcrito na integra porque é bom demais para que seja lido só por quem lê jornal. Mais gente merece conhecê-lo. Por isso uso o blog como divulgação
Então, aqui vai ele.
Cadeira de barbeiro - J.S. Martins (2009)
Seu Chiquinho Villano tem 92 anos de idade e há 80 anos é barbeiro no mesmo lugar, na Rua França Pinto, hoje no 617. A Vila Mariana passou e ele ficou, rejuvenescendo-se todos os dias, já de tesoura em punho às 7 h da manhã de cada dia. Recebe os clientes com a calma de fígaro antigo, a conversa pausada e bem humorada. Ouvi suas histórias, suas anedotas de barbearia, com a pudica recomendação de não publicá-las.
Já trocou de cadeira umas seis vezes, sempre na fábrica do velho Ferrante, que conheceu, outra instituição das barbearias brasileiras, uma fábrica do Cambuci. Sobre a bancada, um velho rádio está permanentemente sintonizado em emissora que transmite música clássica. Lembra com saudade da velha Rádio Gazeta, a emissora de música erudita, que tinha sua própria orquestra sinfônica.
Cheguei até seu Chiquinho por meio do Dr. Tito Costa, seu admirador. Cadeira de barbearia já foi o mote de programa da Rádio Tupi, nos anos 1950, “Cadeira de Barbeiro”, com Aloísio Silva Araújo, como barbeiro, e Manuel da Nóbrega, como cliente. Ali se metia a tesoura na vida de todo mundo, sobretudo nas manhas dos políticos. A cadeira de barbeiro é, neste país, uma das mais poderosas instituições de formação da opinião pública: uns 60 milhões de homens maduros nela se sentam ao menos uma vez por mês e ali expressam livremente o que pensam sobre todos os assuntos. Quando cheguei, metiam o pau na Câmara paulistana pelo aumento do IPTU. Cadeira de barbeiro é a única e verdadeira tribuna livre do povo, único lugar da crítica social e política aberta.
Seu Chiquinho teve clientes famosos. Foi barbeiro de Prestes Maia, duas vezes prefeito de São Paulo, a quem admirava, porque não usava carro oficial, usava o bonde. Recusou democraticamente aos ricos Matarazzos, originários da mesma terra de seu pai, Castellabate, na italiana província de Salerno, a permissão para que construíssem um portão particular no Cemitério da Consolação, na Rua Mato Grosso.
Na revolução de julho de 1924, a Vila Mariana foi cenário de combates e bombardeios, muita gente morreu e muita gente fugiu. De carroça, seu o pai, Affonso Villano, levou a família, a mulher, Philomena, e as crianças, para a casa do tio Gustavo, um parente que tinha armazém de secos e molhados na Barra Funda. E lá ficaram refugiados durante o mês dos combates nas ruas de São Paulo, dormindo no chão. Os meninos voltaram a pé para casa, na Rua Humberto I, a mãe na carroça, com criança pequena. Caminharam a manhã inteira. A criançada acabaria se divertindo com os resquícios da guerra: arrancava das paredes as balas incrustadas, para guardá-las como lembrança.
A cultura da cadeira de barbeiro é a rica cultura do cotidiano, da memória sem escrita, da vida sem arquivo nem papel, do que não importa, importando muito.
Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de Subúrbio (Editora Hucitec/Editora da Unesp, 2002); A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008; Sociologia da Fotografia e da Imagem (Editora Contexto, 2009); A Sociabilidade
Este de hoje foi transcrito na integra porque é bom demais para que seja lido só por quem lê jornal. Mais gente merece conhecê-lo. Por isso uso o blog como divulgação
Então, aqui vai ele.
Cadeira de barbeiro - J.S. Martins (2009)
Seu Chiquinho Villano tem 92 anos de idade e há 80 anos é barbeiro no mesmo lugar, na Rua França Pinto, hoje no 617. A Vila Mariana passou e ele ficou, rejuvenescendo-se todos os dias, já de tesoura em punho às 7 h da manhã de cada dia. Recebe os clientes com a calma de fígaro antigo, a conversa pausada e bem humorada. Ouvi suas histórias, suas anedotas de barbearia, com a pudica recomendação de não publicá-las.
Já trocou de cadeira umas seis vezes, sempre na fábrica do velho Ferrante, que conheceu, outra instituição das barbearias brasileiras, uma fábrica do Cambuci. Sobre a bancada, um velho rádio está permanentemente sintonizado em emissora que transmite música clássica. Lembra com saudade da velha Rádio Gazeta, a emissora de música erudita, que tinha sua própria orquestra sinfônica.
Cheguei até seu Chiquinho por meio do Dr. Tito Costa, seu admirador. Cadeira de barbearia já foi o mote de programa da Rádio Tupi, nos anos 1950, “Cadeira de Barbeiro”, com Aloísio Silva Araújo, como barbeiro, e Manuel da Nóbrega, como cliente. Ali se metia a tesoura na vida de todo mundo, sobretudo nas manhas dos políticos. A cadeira de barbeiro é, neste país, uma das mais poderosas instituições de formação da opinião pública: uns 60 milhões de homens maduros nela se sentam ao menos uma vez por mês e ali expressam livremente o que pensam sobre todos os assuntos. Quando cheguei, metiam o pau na Câmara paulistana pelo aumento do IPTU. Cadeira de barbeiro é a única e verdadeira tribuna livre do povo, único lugar da crítica social e política aberta.
Seu Chiquinho teve clientes famosos. Foi barbeiro de Prestes Maia, duas vezes prefeito de São Paulo, a quem admirava, porque não usava carro oficial, usava o bonde. Recusou democraticamente aos ricos Matarazzos, originários da mesma terra de seu pai, Castellabate, na italiana província de Salerno, a permissão para que construíssem um portão particular no Cemitério da Consolação, na Rua Mato Grosso.
Na revolução de julho de 1924, a Vila Mariana foi cenário de combates e bombardeios, muita gente morreu e muita gente fugiu. De carroça, seu o pai, Affonso Villano, levou a família, a mulher, Philomena, e as crianças, para a casa do tio Gustavo, um parente que tinha armazém de secos e molhados na Barra Funda. E lá ficaram refugiados durante o mês dos combates nas ruas de São Paulo, dormindo no chão. Os meninos voltaram a pé para casa, na Rua Humberto I, a mãe na carroça, com criança pequena. Caminharam a manhã inteira. A criançada acabaria se divertindo com os resquícios da guerra: arrancava das paredes as balas incrustadas, para guardá-las como lembrança.
A cultura da cadeira de barbeiro é a rica cultura do cotidiano, da memória sem escrita, da vida sem arquivo nem papel, do que não importa, importando muito.
Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de Subúrbio (Editora Hucitec/Editora da Unesp, 2002); A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008; Sociologia da Fotografia e da Imagem (Editora Contexto, 2009); A Sociabilidade
Comentários
Que coisa boa foi ler este texto.
Abraços
Você é um exemplo para todas nós!!
Grande beijo!
Um grande abraço.KATIA
CAMPO GRANDEDE MS
Gostaria de uma palestra sua aqui na minha cidade, Guaratinguetá, em 2010.
Vamos combinar.
Um abç!
Multiplicadora de idéias lúcídas sobre o bom viver.
Parabéns
Que me seja permitido acompanhar teus passos futuros... O voyerismo é encantador e confesso que me acomodo feliz igual criança atrás dessa janelinha chamada blog p/ desfrutar de sua experiência, absorver seu entusiasmo e pensar sobre seus escritos.
Que Deus a conserve assim: cheia de vitalidade.
Um enorme beijo
Seu blog é um "banho de cultura" e seu perfil (Quem sou eu)é "delicioso". A propósito (de delícias), também gosto de morango com chantilli e, como você, desgosto de quiabo e "abobrinhas" (conversa fiada).
Enfim, o que quero dizer é que minha "juventude acumulada" (se me permite, adotarei a expressão) se identifica em muito com a sua.
Nossas experiências culturais diferem, pois são muitos os caminhos, mas acredito que há muitos pontos de conecção e que uma troca, ainda que eventual, de experiências e conhecimentos, poderá nos enriquecer e, até, quiçá, a noss@s leitor@s. Uso "@" (arroba), por um princípio de economia (de palavras), quando quero me referir a ambos os sexos, até porque a esmagadora maioria dos visitantes é do sexo feminino e a Linguagem não nos dá muita opção.
Ficaria feliz se você e seus(as) leitor@s deixassem comentários em meu blog www.novaeleusis.blogspot.com
Abraços de Suzete Carvalho