OS SENTIDOS E A MEMÓRIA
Há 11 anos coordeno um projeto
que atualmente considero como meu “canto do cisne”, o último (porque aos 85
anos as perspectivas não são nem a médio prazo) em que acredito, me empenho com
entusiasmo e quando obtenho resultados positivos (e até terapêuticos) me sinto
realizada, e sinto que ainda estou protagonizando alguma atividade de valor real.
É o projeto RESGATE DE MEMÓRIA
AUTOBIOGRÁFICA desenvolvido em 16 Encontros semanais de 2horas cada um.
Esse projeto não é estático. É dinâmico. Ao longo desses 11 anos já sofreu muitas
alterações de acordo com o público alvo, com o espaço onde estou atuando, com o
tempo que disponho, com os novos conhecimentos que adquiro, com a minha própria
mudança pessoal.
Um dos temas OS SENTIDOS E A MEMÓRIA usa a
manipulação de material variado para resgatar memórias pessoais em qualquer
tempo da vida.
Assim para o resgate de uma
memória pela VISÃO, qualquer
coisa que chegue aos olhos pode nos levar a alguma memória. Durante o encontro
usamos fotos de paisagens, pessoas ou cada participante procura em sua própria
memória alguma coisa que tenha deixado marcas. E objetos diversos.
Para o resgate da memória através
da AUDIÇÃO usamos músicas de época,
sons ruídos, palavras. Porque, “basta um acorde para que a memória retire do
fundo do subconsciente a procurada frase da melodia que aí se escondeu”.
Para o resgate da memória
através da SENSIBILIDADE TÁCTIL
usamos tudo aquilo que pode ser percebido pela pele através do tato, e que nos
traga lembranças. Como ex. papel de bala, fitas de cetim, feltro, Lixa, chave.
Cordão, linha….
Para o resgate da memória
através do OLFATO usamos folhas com forte
odor (manjericão, alecrim, arruda, hortelã, …) ou café, camomila, erva doce, curry,
canela, cravo, orégano, pimentas... que cheiradas são capazes de trazer do
fundo de nossas lembranças algum acontecimento marcante.
Para o regate da memória
através da GUSTAÇÃO, do paladar,
qualquer tipo de alimento, tudo o que se pode comer e que se dissolver na
saliva, pode nos trazer lembranças. Usamos então frutas, balas, sementes,
pedaços de alimentos comuns ou inusitados.
Tenho
belos exemplos de quanto essa memória pessoal pode ser resgatada por depoimentos
feitos do decorrer dos Encontros.
Para a
SENSIBILIDADE TÁCTIL como
recuperadora de lembranças:
- A dolorosa lembrança táctil de uma
“bundinha” de criança que na época da guerra, na Itália, teve que se higienizar
com folha do mato, só que esqueceram de avisar que qualquer folha servia, menos
as folhas de urtiga !!!!!!!! ;
- a aspereza
(ao mesmo tempo suave) das mãos de minha mãe;
- a
sensação do veludo de um vestido novo e
muito desejado;
- a
sensação de trançar os cabelos;
- a
perfeição do assentamento das pregas na saia do uniforme escolar branco na
infância e marinho na adolescência;
- o
laço de fita que prendia meu cabelo que sempre pensei ser maior que a minha
cabeça
- a boina que substituiu o laço de fita;
- a
leveza de minha primeira caneta tinteiro melhorando a minha letra;
- o
carinho da mãe desembaraçando os cabelos (não havia condicionadores);
- as
espetadas de agulha quando apendia a bordar;
- os meus bichinhos de estimação, suaves e
companhia para dormir;
- memória
dos partos que realizei com a satisfação de ter um nenê nos braços, tocá-los e
coloca-los em contato com o mundo;
- sensação táctil de liberdade ao saltar de um
trampolim a 10m de altura e o meu corpo tocar a água da piscina;
- retalhos
que costurados davam cortinas, almofadas, toalhas de mesa, remendos caprichados
e roupas para as crianças mais novas;
- canequinha de ágate para o café no sitio
- o
primeiro travesseiro molhado de lágrimas e babado de medo, mas amigo e seguro
durante uma guerra;
- o
corpinho do meu neném, meu melhor produto descobrindo cada detalhe, cada
cobrinha, unhinha, xoxotinha, dois braços e das pernas agitados, duas orelhas, nariz, boca desdentada, dois olhos surpresos, uma
mulherzinha perfeita em miniatura. Minha boneca, só minha;
- a barba do John grisalha e macia uma delícia
apoiar o rosto, pentear com as mãos;
- lembrança da primeira vez que um seio
feminino veio parar na minha mão de adolescente, firme e aveludado
Para a memória resgatada pela GUSTAÇAO
- Balas de leite da Kopenhagen que ganhávamos
no final de ano da professora de piano e que recheavam nossos bolsos conseguiu
levar alguém a um tempo precioso e a uma história de sua vida que estava
esquecida;
- Algodão
doce de um circo;
- O gosto do arroz molhado, acabado de fazer
comovo frito ou bife de fígado que eu comia às 10:00 para dar tempo de chegar á
escola ás 10:45;
- ;o xarope de guaco de minha avó materna;
- o sambuca do meu avô italiano;
- a polenta mole para comer com açúcar e
leite;
- o
bolo de mel com gengibre e cobertura de chocolate;
- Sabor do leite de vaca ordenhado no curral e
coberto de espuma;
- dos cajus de nossa casa de Mato Grosso,
coloridos suculentos e perfumados que produziam manchas nas roupas e que saiam
só depois de um ano (segundo a mãe);
- os
biscoitos de natal com receitas alemãs passadas de geração em geração;
- as
castanhas do Pará que meu pai
madeireiro trazia das matas onde procurava árvores de interesse para a serraria
onde trabalhava, ricas em selênio e oleosas causavam diarreia;
- bolinho de arroz com mandioca açúcar e erva
doce e assados em latas vazias de sardinha;
- o doce de caju de Cáceres, no Mato Grosso;
- o gosto da vacina BCG oral, incomparável porque nem doce, nem amargo,
nem azedo. Para mim, gosto de BCG;
- o
sabor do leite condensado oferecido por soldados americanos no final da guerra,
e dividido com a namorada;
- sal e
adoçante de fabricação doméstica a partir de carbonato de sódio para suprir a
carência de sal e açúcar;
Para MEMÓRIA OLFATIVA, depoimentos
transcritos:
o perfume da dama da noite no jardim da minha
adolescência;
- o bolinho de chuva fritando nas tardes
chuvosas com a família;
- loção
após barba do meu marido;
- o lança-perfume do carnaval;
- o
cheiro de paio na sopa de ervilha temperada com alho frito no azeite;
-do café de coador de pano às cinco da manhã
que me fazia pular da cama;
- o
cheiro da canela em pó nos bolinhos de chuva e rabanadas no chá das tardes de
domingo;
-o cheirinho de bebê dos filhos e netos;
- o cheiro da pipoca (arrebenta pipoca, maria
sororoca) no fogão de lenha;
- cheiro
de grama recém aparada às margens do rio que era o nosso quintal;
- o
cheiro do doce de leite mexido em tacho de cobre com uma colher de pau gigante
na fábrica de Avaré, o atual “pingo de leite Avaré”;
-o cheiro de madeira ao ser serrada nas marcenarias e
serrarias onde o pai trabalhava;
- o
cheiro do café da hora do lanche no Banco do Brasil;
- o cheiro ao abrir a lata de pó de café,
melhor do que o próprio café coado;
- cheiro da Brilhantina Atkinsons que meu pai
usou a vida inteira trouxe lembranças de relacionamentos pai, filhos (história
contada);
- o cheiro
de panetone, pizzas, de doces italianos como crostoli e fritelli;
- o aroma
da primeira chuva na terra quente do sol;
- um perfume “ Àrpege” de fabricação doméstica
com os conhecimentos de química para suprir carências de guerra;
A MEMÓRIA AUDITIVA nos traz recordações de vida como atestam
depoimentos:
- o ruído do portão da rua
mudava de acordo com a mão que o empurrava e junto com o som dos passos
informava se era o ai, a mãe, ou qual dos irmãos estava chegando;
- voz da Dalva de Oliveira cantando Ave maria do
Morro gravado em disco de 78 rotações
girava na vitrola de corda aos domingos de manhã quando eu voltava da missa das
oito;
- o
assobio do meu pai para reunir os filhos (que meu marido e filhos repetiram);
- o
apito de trem que me dá a sensação de separação;
- o
arranhar na porta quando meu gato Peter queria entrar depois de sua farra
noturna;
- o som da minha voz repetindo para as bonecas
e as árvores do meu quintal, tudo o que a professora ensinava na escola e que
eu repetia para as árvores e bonecas;
- o ruído da máquina de costura de minha mãe;
- o
mugir das vacas no curral;
- o
canto do galo ao amanhecer;
- o coral da Faculdade de Medicina dos
Hospitais da Santa Casa de Misericórdia;
- apito
da serraria onde o pai trabalhava o primeiro choro dos bebês que ajudei a
nascer;
- o
prazer que me proporcionavam os cânticos entoados na Igreja Batista;
- os primeiros sons que consegui tirar de um
violino;
- Chiquita Bacana dos meus carnavais, as
valsas que meus pais gostavam de dançar, herança das tradições alemãs;
- das musiquinhas alemãs cantadas por pai e
mãe;
- barulho
do remo e da canoa nas águas do rio que era nossa rua;
- as palavras niitshan e neetshan para chamar o
meu irmão ei irmã mais velhos;
- sons
de piano, obrigatórios como estudo;
-o som das bombas, sirenes, tiros, gritos
durante a guerra;
- os gritos, ruídos falas confusas de homens e
mulheres sendo espancados numa delegacia nos tempos de ditadura;
- os sons dos concertos e óperas do La Scala
de Milão participando das claques para aplausos nos momentos certos;
A MEMÓRIA VISUAL é a que mais lembrança trás, mas requer atenção. De
alguns depoimentos:
-Nos meus 10 anos lembro as cortinas brancas
de crochê da sala e do quarto da frente me encantavam;
- na cama de meus pais a colcha também branca
de crochê tinha o forro rosa que mudou para verde tempos depois;
- minha
mãe tirando o barbante dos sacos de farinha de trigo que eram comprados muito
baratos. Depois de lavados e alvejados, viravam lençóis de baixo e fronhas para
as quatro camas dos meninos, toalhas de mesa, panos de prato e sacos para o
pão;
- o canivete de meu pai verdadeiro faz tudo;
- as manchinhas senis das mãos dos meus velhos queridos;
- o
mapa da cidade impresso em papel fino levado sempre na bolsa bem dobradinho
objeto obrigatório para quem vinha de cidade pequena para São Paulo e não se
perder;
- os campos de trigo de visão dourada com
manchas vermelhas de papoulas;
- o
muro de Berlim (1961-1989), com 3,6m de altura por 160km de comprimento separando
famílias, do qual nem se permita aproximação.
E este último depoimento, não
agradável quanto foram as memórias anteriores serve de gancho para o regate da
memória visual que mais me impressionou no depoimento de um participante de 91
anos:
“Em abril de 1945, numa praça
de Milão, perto de minha casa (Piazzale Loreto) vi Mussolini e sua última
namorada Claretta Petacci, motos e pendurados pelos pés num posto de gasolina,
expostos ao olhar de todos. Que os matou foi um grupo de “partisans” que os interceptou
na fuga para a Suíça. Foi o fim de uma época. Um padre, com pena, aproximou-se
do cadáver da mulher e amarrou-lhe a saia na altura dos joelhos para poupar a
visão das calcinhas. Tempos bárbaros. ”
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Comentários
Desde que, por acaso, quando morava na Suíça, encontrei um artigo seu, venho seguindo suas histórias sempre que posso.
Textos sempre interessantes, bem escritos e, sobretudo, com muito bom gosto.
Parabéns!
E muito obrigado!