A VÓZ DOS OBJETOS - UM SOFÁ CONTA SUA HITÓRIA
Volta outra vez a história do sofá, meu objeto biográfico por exelência. Só que agora é ele quem tem vóz e é ele quem conta sua história.
Estou na Terceira idade. Mas não me chamem de
“velho”. Prefiro dizer que ainda estou na ÚTIL IDADE porque ainda continuo
exercendo minha função. São 63 anos servindo a mesma família. Durante quatro
gerações.
E pertencia à elite dos móveis, porque na casa
onde fui comprado habitavam outros do mesmo gênero representando a melhor
qualidade.
Os meus primeiros donos nessa época estavam em
tempos e “vacas gordas”. Tinham comprado uma “mansão” e a mobiliaram com tudo a
que tinham direito em quantidade e qualidade. Como o espaço era grande eu, com
quatro lugares pude ocupar meu espaço com largura e para completar o conjunto,
compraram também três poltronas que passaram a ser minhas “esposas” porque
vivemos sempre juntos. Eu vivia flertando com elas, mas ficávamos distantes uns
dos outros. Só nos aproximávamos mesmo em dia de limpeza quando éramos
arrastados e podíamos nos chegar mais. Às vezes uns “amassos”.
Nessa época tínhamos a roupa original,
vermelha, de um gorgorão grosso e vistoso.
A filha da minha dona era jovem, bonita,
estudiosa, mas era sozinha quando eu cheguei. Mas, poucos meses depois
encontrou o amor de sua vida.
Minha primeira grande noite de gloria foi
quando ela foi ao seu baile de formatura.
Pode esparramar seu lindo vestido branco pelas minhas almofadas. Um
registro fotográfico importante.
E uma das poltronas foi utulizada para a foto dos ainda namorados em noite de formatura formal.
Ayrton e Neuza namorados em 1952
Às vezes os quatro – pais da moça e os dois
jovens se encontravam na sala para uma foto. Outro registro importante porque
com o correr do tempo esse 1952 foi uma marca. Sonhos a dois
João - Eudóxia - Neuza - Ayrton - 1952
Todo o namoro e todo o noivado foram sobre
minhas almofadas. Foi sobre elas que a comunicação do namoro foi feita e
aceita. Primeiros tempos de desacertos, de conhecimentos mútuos, ainda não um
começo de vida a dois, mas se acostumando um ao outro, pé ante pé,
devagarzinho. Os “selinhos” de agora, eram os primeiros beijos de antes. Beijos
beijos mesmo, eram fora de casa, geralmente no cinema ou carro, roubados,
escondidos.
E aí,
eu não via nada. Só imaginava
Mas, dois seres de sexos opostos namorando
tendem a se aproximar mais, contatos físicos maiores. Fui testemunha de cada
passo das primeiras intimidades “não muito íntimas”. Época dos boleros, muita
música acompanhou o namoro e nos deliciavam também. As letras, sensuais, eram perigosas. Muitas
vezes tive vontade de fazer minhas molas rangerem para alertar os dois do
“perigo” eminente.
Ouvi quando resolveram que as dúvidas já
tinham sido desfeitas, as arestas aparadas e já podiam pensar em casar. Nesse
ano de noivado o trabalho dos dois foi muito e nos poucos intervalos quando não
estavam juntos, a moça bonita bordava belas toalhas de ponto cruz. A cada ponto
um pensamento amoroso.
Às vezes eu ficava sozinho com minhas
“esposas” porque a vida da família acontecia em outro espaço da casa. Ainda bem
que o velório do avô não foi nos meus domínios.
Tremi só de pensar antes que a família resolvesse que seria na sala de
jantar. Livrei-me de boa. Eu não conhecia
bem o velhinho avô porque ele era discreto e quando ficava para “tomar conta”
do casal, ia dormir no seu quarto e eu ficava só dos dois. Mas, cuidadosos, nós quatro “vigiando.”
Casamento. Outra noite de gloria quando a
noiva amorosa, ansiosa e expectante se sentou nas minhas almofadas, solteira
pela última vez, para o registro fotográfico indispensável.
Mudamos de casa pela primeira vez. Mudamos não
só a “minha família’ - eu e as minhas três “esposas”, mais o jovem casal.
Espaço menor, nem sei como coubemos. Melhor para o aconchego de todos.
Continuamos com a mesma roupa de gorgorão
vermelho até perto de chegar o segundo bebê da nova família. Nessa época minha
roupa já estava rustida, gasta de tanto servir como cama para um hóspede
temporário, como mais tempo de bumbuns sentados e começando os tempos de pula
pula de criança. Não gostava muito, mas
tinha que me acostumar. Principalmente eu porque ninguém pulava nas minhas
“esposas”, as poltronas.
O vermelho sangue da minha roupa foi mudado
para uma cor mais triste, mas mais prática para aguentar agora duas crianças.
Era cor de cinza com mistura de brancos.
Quando nos tiraram pela janela para irmos trocar de roupa, o menininho
chorou. Não queria que eu fosse. Porque
gostava muito de mim. Foi emocionante sentir o apego de uma criança.
Ainda fiquei quatro anos nessa segunda casa,
cada vez mais apertada, agora com duas crianças a cruzar quartos, sala, cozinha
e até o consultório do pai que era no mesmo espaço.
E aí mudamos de novo de casa. Uma casa agora,
não mais um apartamento. Sala grande onde pudemos nos acomodar com conforto.
Nossa roupa já muito usada teve que ser mudada de novo. Não sei o que deu no casal que nos vestiram
de plástico branco. Dá para imaginar o horror? Não tinha nada a ver com nosso
estilo. Plástico!!!!!! Branco!!!!! Em um
instante estávamos sujos, encardidos e a mudança seguinte teve que ser meio
rápida.
Mas, também não tivemos sorte. A cor era linda
– um bege amarronzado tecido em listas. Mas, quem fez os “vestidos” não tinha
competência, nem gosto e nem capricho. As listas do assento nunca combinaram
com as do encosto. Um horror. Diferente do plástico branco, mas mesmo assim, um
horror. Tivemos que carregar esse desconforto por um bom tempo porque a verba
para “costureiras” tinha acabado. Não pense que minhas esposas gostaram. Elas
eram muito submissas e não davam palpites. Só eu é que reclamava. Comigo mesmo
é claro
Nesses dois horrores passaram-se uns 10 anos.
Épocas de muito trabalho, muito movimento em casa, crianças crescendo, fomos
totalmente ignorados embora participássemos de conversa, de decisões de
trabalho e de convivência, ouvimos muita música, presenciamos muito trabalho.
O tempo passou e hora de renovar as coisas
chegou. Nós já tínhamos uns 25 anos o
que para um móvel é sobrevida grande.
Minha maioridade foi presenteada com o
ambiente mais lindo em que morei. A
compensação para os horrores anteriores veio sob a forma de cores combinando.
Combinando mesmo. A sala foi pintada de azul em três tons: o teto era azul
claro, as paredes de um azul médio e um detalhe proeminente da sala era azulão.
A cortina era do maior bom gosto. Em listas transversais em vários tons de azul
davam à essa parede de oito metros (que era de janelões para fora) o aspecto de
um palco de cinema.
E nós, eu o sofá e minhas “esposas” fomos
agora vestidos de azul marinho numa perfeita combinação.
Dessa maneira linda recebemos os convidados
para a festa de duas bodas de ouro: pais do casal. Serviu também de palco para
o casamento da “criança” da casa que se casou nos nossos domínios com um
vestido também azulão combinado com o ambiente.
Já então a sala tinha até uma grande televisão
e nós éramos pouco ocupadas porque almofadões no chão nos dava uma folga.
O tempo passa, um bebê vai chegando e com a
renovação da vida, renovam-se também os ambientes. Agora a cortina é branca,
vaporosa e nossa roupa volta a um cinza e branco quase igual àquele segundo
traje. Apesar de quatro crianças em casa, não sofremos muito. Havia muito
espaço para o quarteto correr, brincar, azucrinar, e encantar os avós. E os
bisavôs. Por incrível que pareça nenhum dos cachorros jamais subiu sobre nós.
Nem Quem-Qüem, nem Pinduca, nem Paloma. Mesmo quando os quatro cachorros
estiveram um tempo na casa – Paloma, Pamina, Sol e Lua – nenhum ousou subir nos
nossos colos.
Aos poucos tomando seu rumo, os jovens da casa
vão nos deixando e quando foram
apenas quatro (dos 12 e às vezes 14) os personagens da família
que estavam juntos, nova mudança. Agora outro apartamento, mas escolhido porque
cabíamos eu o sofá e minhas “esposas”.
Se não coubéssemos, acho que desistiriam do apartamento, mas não de nós.
Uma das esposas correu o risco de ser abandonada, mas com jeitinho ficamos
juntos todos nós e também quatro.
E novamente mudamos de roupa, agora para um
tecido cor de mel. Ficamos bem bonitos todos. Tínhamos então muita luz, uma
vista maravilhosa e um pouco mais de sossego. Digo um pouco, porque muita
mamadeira foi derramada sobre nossa roupa, muito xixi escapado, muitos pezinhos
pulantes nos “agrediram”.
Nova troca de roupa. Um gobelin original, bem
de acordo com nosso estilo. Bem vestidos já mostramos uma “osteoporose”
manifestada pelos rugidos da estrutura e a nossa pele mostra já “escaras” em
vários pontos. Nada que um novo empalhamento não resolva. Só tem uma das
esposas, a mais usada, que aguarda a sua vez de cirurgia de empalhamento. Como
é uma cirurgia mais invasiva, há que dar um tempo.
Na nossa atual vida já estamos meio
desbotadas, marcadas pelo uso agora de adultos, mas temos o orgulho de ser
“objetos biográficos” da família. Toda uma historia de vida passou por nós.
Testemunhamos durante esses 63 anos noivados com abraços e beijos, casamentos,
nascimentos, desaparecimentos, épocas se acertos e desacertos, de fases
construtivas, de convivências às vezes conturbadas, de amizades nascentes e
continuadas.
Na minha infância eram quatro os que se
sentavam sobre minhas almofadas. Depois foram três depois dois e agora só tem
uma da família próxima a me cultuar, me endeusar e me dar o valor simbólico de
sua família, de uma História. Alguns anos mais (ou não) não haverá mais ninguém
para me olhar com carinho, com olhos de lembranças e respeito.
Aqui já falta o biso (bisavô) João
Aqui falta o Ayrton
Aqui falta Eudóxia - Eu, Neuza estou sozinha
Pera aí!!!Pera aí!!
Nada de pensamentos piegas, pessimistas e fúnebres!! Tanto quanto foram desaparecendo as pessoas mais ligadas a mim, foram aparecendo novos usuários e a vida se renovou com agora quatro já adultos que vez por outra se encontram, sentam-se sobre mim e tiram clássicas fotografias de registro. Já quase não cabem nos meus quatro lugares.
Victor – André – Neuza – Tiago – Bruno espremidos no sofá
A
História vai ter continuidade em 2015
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Comentários
Um abraço carinhoso o/