A VOZ DOS OBJETOS – O BAÚ DA MEMÓRIA


Era uma vez um baú. 

Como todo baú que se preza aquele também é de madeira e ocupa um lugar importante, na sala principal da casa. 

Um dia, alguém ouviu um zum zum e se aproximando bem pode ouvir uma vozinha esganiçada falando, falando falando. Não dava nem tempo do seu parceiro argumentar ou dialogar.
Quem seria? O que dizia? O alguém foi se aproximando, abriu a tampa do baú e lá dentro encontrou muitos objetos, bastante diversos, ajeitados, dividindo um espaço comum. Foi fácil identificar de onde vinha a tal vozinha e de quem era. Era uma “Tesourinha” com seu parceiro “Furador” que trocavam conversa.



- Pois é – dizia a “dona” Tesourinha - eu sou a moradora mais velha deste baú. Não a que mora há mais tempo, mas a mais velha em idade. Tenho quase 100 anos e você deve andar por aí. Ganhamos o direito de estar aqui porque durante anos servimos a certa mocinha no seu ofício de bordar a máquina. A máquina de costura naturalmente;  e nós dois ajudamos nos belos bordados de “rechilieu” que se usava na época. Você furava o pano, ela bordava em volta e eu cortava o pano que sobrava para que o buraquinho ficasse bem redondinho e arrematado. Fomos esquecidos muito tempo, sempre estivemos guardados e aqui estamos nós fazendo parte de uma história de vida. 

Mas, olhe só “seu” Furador, não estamos sozinhos. Vamos conversar com nossos vizinhos para ver o que eles têm para nos contar e nos dizer por que estão aqui também.
 - Olha lá que coisa grande. O que será?
 - Parece uma mala “dona” Tesourinha.
 - Não é uma mala não. É uma valise “seu” Furador.
 - Valise? O que é isso?
 - Valise é uma maleta parecida com aquelas que os médicos bêbados de filmes de farwest americanos usavam com seus instrumentos e sua inseparável garrafinha de uísque. 




- “Dona Valise”, porque a senhora está aqui? Perguntou a xereta “Tesourinha”.

- Durante alguns anos fui objeto de desejo de um senhor que tinha suas próprias manias. Depois de muito ser procurada, alguém me deu de presente para ele. Desde então passei a carregar seus remédios – que não eram poucos - seu medidor de açúcar no sangue, seringas, insulina, e quando em viagem, seus objetos pessoais. Hoje, guardo lembranças do que ele foi: suas muitas lupas para enxergar melhor, óculos especiais, seu pincel de barba, chaveiro, a caneta preferida sempre com tinta preta, a calculadora pessoal, o apito que servia para chamar alguém quando estava acamado, o boné com o nome que ele usava sem o menor constrangimento nas viagens de ônibus e metrô, e até alguns fios de seu cabelo, seu DNA preservado. E tem espaço para que sejam guardados também objetos de sua companheira quando ela se for. Compartilhando espaços é como se ainda compartilhassem vidas.

 - Obrigada, obrigada. “Dona Valise”. A senhora sabe o que significam aqueles discos, fita e CD?
 - Pergunte a eles – respondeu a Valise.

- Já ouvimos a pergunta e vamos responder: Somos a reprodução sonora de um casamento. Os discos, pequenos como se usava no meio do século XX, de 45rpm, é a gravação original. As fitas a reprodução dos discos e o CD uma versão mais moderna. Reproduzem duas vozes fazendo votos que assim ficaram eternizadas. Em qualquer tempo podem ser ouvidas, trazer lembranças, resgatar emoções e vivências de um momento de felicidade.


Vamos continuar a bisbilhotar diz a “dona” Tesourinha para o “seu” Furador. 
- Olhe! Lá no fundo, há alguma coisa fofinha, que dá para a gente deitar e tirar um cochilo. Daqui dá para ver que são quatro casaquinhos de lã, bordados com datas: 1984, 1985, 1988. Vamos lá, Contem para nós a sua história.

- Somos as lembranças de quatro bebês, quatro elos genéticos que são a esperança de imortalidade de dois casais e o situam num tempo real: André vestiu o que tem bordado o nº 1984. Bruno e Tiago, os gêmeos, vestiram os de 1985 e o de 1988 foi de Victor. Representantes materiais de infantes que chegaram, encantaram e realizaram sonhos esquecidos de avós ansiosos. Merecemos viver neste Baú.



E “dona“ Tesourinha e “seu” Furador continuam seu passeio xeretando a vida de seus vizinhos. Lá no cantinho, aproveitando um espacinho pequeno está uma caixinha feia, escura, velha.
 - Por que será que ela está aqui? Pergunta “dona” Tesourinha para “seu” Furador. Conte para nós sua história - diz o “seu” Furador para a caixinha feia e velha.



- Eu tenho 90 anos. Fui de um tempo em que se tomava chá inglês e ele vinha de longe. Está escrito aqui: do Ceilão. A marca? Te Sol. Uma vez vazia, me usaram para guardar certas penas de aço que serviam para escrever letras todas rebuscadas, de livros de contabilidade. Para que não enferrujassem, misturaram talco e ainda é o mesmo de mais de 90 anos. Ainda bem que talco não apodrece. Sou lembranças de um pai, de uma profissão, de uma época. Para quem souber me observar, tenho muito que dizer.

Deitados no fofinho dos casaquinhos de lã, “dona” Tesourinha e “seu” Furador não conseguem cochilar porque perto deles estão duas velhinhas muito charmosas lembrando seus tempos de gloria.


Lembram o aniversário de 80 anos daquela tia querida, sempre lembrada carregando uma trouxa de roupa na cabeça e cruzando a cidade para buscar roupa suja, lavar e trazer de volta a roupa já limpa e passada. Em vez de 80 velinhas, foram feitas 80 de nós, no capricho. Temos dois centímetros de altura. Todas de vestidos diferentes, óculos, cabelinhos brancos e até calcinhas. Como fomos apreciadas e disputadas! Onde estarão as outras 78? Pelo menos nos deixaram juntas para matraquear. É um orgulho e um sossego participar deste Baú. Nossos vizinhos são todos muito bons e tem histórias.

Desistindo de cochilar, “dona” Tesourinha e “seu” Furador continuam a falar de seus vizinhos.

- Olha lá. Outra coisa muito grande para este Baú. Mas é chata e não ocupa muito espaço. Parece um cadernão velho, com uma capa esquisita, muito colorida e com o desenho de uma hélice. Ouvi dizer pelos habitantes mais novos deste Baú que representa um tal de DNA que agora é famoso. Faz 40 anos que ele está nesse cadernão, que viajou para a Espanha e retornou 25 anos depois para suas origens. Soube que foi o testemunho da relação afetivo-maternal de uma professora muito dedicada e de um aluno especial. Representa o fruto de uma realização profissional.


- Olha “seu” Furador. Está chegando um habitante novo neste Baú. É comprido, sem graça, deselegante, duro e brilhante. Parece ser de aço. Vamos ver o que ele tem a dizer.

- Sou feio, sem graça, mas forte para exercer o papel a que me destinaram. Estive durante algum tempo tentando concertar um osso quebrado, mas não consegui. Fracassei e fui descartado para dar lugar a algo mais sofisticado: uma placa e 16 parafusos. Preferia ter ficado dentro de um fêmur e evitado mais sofrimento. Também se guardam lembranças de maus momentos para poder dar valor aos bons. Prometo que não ocupo muito espaço e não vou atrapalhar. Não me fotografem.  Não tenho graça nenhuma.

Depois de cruzar com a deselegância do pino de aço, “dona” Tesourinha e “seu” Furador encontram duas caixinhas lindas, douradas e marchetadas como só se encontram em Toledo na Espanha.
       

 E o bate papo continua:

- Fomos presentes daquele aluno distante, muito querido que também mandou o “cadernão”. Fomos escolhidas para abrigar objetos importantes. Uma de nós tem um anelzinho simples, símbolo de um amor nascente. Um primeiro presente, uma primeira demonstração de carinho. A outra tem um medalhão, restos de pilhagem em uma revolução que atingiu São Paulo de maneira violenta em 1924. Esquecido na devolução passou a fazer parte das “joias” da família. Acho que nem de ouro é. Representa um contexto social conturbado, lembra uma cidade destruída e um povo apavorado, fugindo sem rumo.

“Dona” Tesourinha continua sua prosa com “seu” Furador

- Lembra que eu falei que ajudamos a bordar os famosos “rechilieus”. Pois olha lá um bordado que nós ajudamos a fazer. Quando a nossa dona ia se casar, lá pelos idos de 1929, ela bordou todo seu enxoval à noite, quando voltava do trabalho. Bordou uma colcha e duas fronhas. Um primor e uma obra de arte. Só ficou a fronha, mas ela é uma prova de trabalho, habilidade, paciência, e foi também um ato de amor, quando junto com os pontos se misturavam os sonhos de moça, as expectativas de futuro. Com mais de 80 anos ainda está perfeita e habita com direitos de antiguidade e significação este baú de memórias.



Outra vozinha se faz ouvir:

 - Vocês não me viram aqui? Vejam como eu sou bonita. Branquinha, toda bordada e com laços de fitas, eu represento também uma época, costumes de então. Chamavam-me ”liseuse” num francês muito pedante da época. Eu era especial porque acompanhava a “camisola do dia”. Vocês sabem o que isso significava? Naquela época, o costume era casar virgem e a noite de núpcias era realmente a primeira noite de um casal. A preparação era todo um ritual, a camisola tinha que ser branca – símbolo da virgindade, pureza e inocência (???). Sobre a camisola ainda uma capinha, eu, para complementar o traje. E, num arroubo de praticidade, a “liseuse” servia para, nove meses depois (?) cobrir os pudores de uma recém-mãe quando amamentava seu primeiro filho. Tive ainda mais valor porque fui toda bordada à mão por uma amiga da família, uma baiana muito querida, extrovertida, alegre e sempre lembrada. Fui guardada como recordação de amores descobertos, intimidades aprendidas
. 

Agora é “seu” Furador quem se assusta com uma “velhona”. É também uma boneca agora muito grande, que representa uma também velha. Assustado, pergunta à boneca quem ela representa.


- Eu participei de uma festa de 90 anos. Representei muito bem a dona dos 90 anos. Meus cabelos são tão brancos quando eram os dela e tenho até do meu lado uma cestinha com os tricôs e crochês que ela então fazia. Quem me fez foi a mesma que fez as ”velhinhas”. Foi uma festa muito bonita, emocionante e de surpresa. A dona da festa já partiu para outros espaços aos 97 anos.

Ainda curiosos querem saber que canudos de papel são aqueles que estão lá no canto. São três.

Desenrolado, o primeiro deles e já começa a contar sua história:
- Sou uma mensagem que cheguei lá do outro lado do mundo, da gelada Suécia e vim pelo ar pela “dona” Internet. Quem me escreveu foi um senhor que lembrou seus tempos de escola e de uma professora meio maluca que para explicar melhor seus temas fazia corridas de baratas, dissecava sapos e minhocas, criava bicho da seda. Ele nunca se esqueceu dela e daquilo que aprendeu. Feliz ficou quem recebeu a mensagem porque lhe deu satisfação profissional e se sentiu lembrada. Guardou-me como um símbolo.

O outro canudo se assanha todo e quer também participar da conversa.
- Eu sou a cópia de um documento, sobrevivente de guerras e de erupções vulcânicas que diz que a família do Baú tem raízes encontradas na Itália, desde 1769. Comigo foi recuperado um sentimento familiar especial. Famílias de dois continentes se encontraram, distantes no tempo e espaço, mas próximos pelos sentimentos e tecnologia atual.

- Eu sou um diploma de um curso de italiano – diz o terceiro rolinho – Sou o resultado da tenacidade, obstinação de alguém que começou a se preparar para a realização de um sonho. Eu consegui que o sonho fosse realizado e agora está sendo vivido. Sou de alguém de uma geração mais recente, de índole mais aventureira e corajosa que foi em busca do seu sonho.

Satisfeitos com a explicação, “dona” Tesourinha e “seu” Furador, já apresentando sinais de cansaço, ainda querem saber o que são aqueles três pequenos livros feiosos com muita coisa escrita. Já motivado por ouvir as histórias dos outros vizinhos, um deles começa a falar:

- Somos diários, testemunhos escritos de um namoro. De um tempo vivido há 60 anos. Relato sincero de acertos e desacertos, descobertas e encantamentos. O dia a dia de uma mulher apaixonada, suas sensações, emoções e sentimentos.


Chega por hoje diz “dona” Tesourinha. Há mais vizinhos aqui, mas vamos deixar para outro dia. Você percebeu “seu” Furador, que se nós pararmos para pensar podemos conhecer uma história de vida, com os depoimentos desses objetos?  É, a vida se constitui de pequenos pedaços, pedrinhas de um mosaico que reunidas formam uma história.

E “dona” Tesourinha e “seu” Furador descansam agora até uma nova excursão pelo Baú para ouvir novas histórias e completar uma História de vida.



Esse Baú existe e ainda tem um companheiro, o Bauzinho da Memória.

   


























Comentários

Jô Turquezza disse…
Que lindo e emocionante.
E que ideia maravilhosa dos bjetos contarem sua história.
Parabéns, lhe admiro muito!
Beijos.
Célia disse…
Revirar nossos baús... nossas memórias afetivas é uma catarse! Bela narrativa de vida, Neuza!
Bj. Célia.
Unknown disse…
... sem falas e sem movimento, assim me sinto. Uma palavra me vem na memória! Encantamento. Parabens pela sua sensibilidade... sua LUZ.
Prof. Agripino Junior

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