DECISÕES DIFÍCEIS (mas não tanto) consciente e sem conflitos– DOAÇÃO DE CORPO
Isto é uma explicação para
meu comportamento, no mínimo inusitado.
Não foi uma decisão difícil.
No mínimo teve seu tempo e sua hora e se apoiou na minha própria filosofia de pensamento
e em ser prática, racional e objetiva.
Quando se morre, formalmente
há velório, enterro (ou cremação) e tradicionalmente tudo acontece como um
ritual. Velório - uma vigília ao defunto – é para mim algo mórbido onde se
prolonga o contato. Sofrido para a família próxima, meio indiferente para a
maior parte dos participantes. Acaba sendo uma atividade social obrigatória. Os
judeus nem abrem o caixão no velório. Ótimo. Fica para cada um a lembrança mais
querida.
Do ponto de vista religioso
é a encomenda da alma (sempre as mesmas palavras e quanto mais palavras maior o
sofrimento dos mais próximos) coisa em que eu não acredito. Sou bióloga,
materialista e entendo que quando as funções vitais param tudo acaba mesmo.
O velório culmina com o
enterro (ou cremação) outro ritual macabro que gera aos que se afastam uma
sensação de culpa por deixar o ”algo” sozinho, como que abandonado. Tudo em
função de rituais tradicionais
Sou avessa a isso tudo.
Nunca me conformei de me deixar ser devorada por vermes, bactérias e toda
espécie de seres vivos necrófagos. Não posso deixar de pensar nisso. É de minha
formação e minha filosofia de vida. que voltamos a ser decompostos em Carbono,
Hidrogênio, Oxigênio, Nitrogênio e toda a quantidade de elementos químicos que
constituem o ser humano. Misturados ao solo se recombinarão e poderão formar
elementos dos reinos minerais (solos) vegetais (plantas que absorvem os
elementos pelas raízes para o seu crescimento) ou outros seres vivos, até seres
humanos.
Já o Eça de Queiroz imaginou algo humanista e racional, embora
poético.
“Bem-aventurados os que vão
para debaixo do chão, porque vão para uma transfiguração sagrada. Mal caem
sobre eles as últimas pazadas de terra e o canto dos padres, bárbaro e dolente
se perde com o fumo dos círios, o corpo fica só na plenidão da noite e do
silêncio perante a grande vegetação esfomeada, ele vai dar-se ali como pasto às
bocas sinistras das raízes: ele amolece entre as humidades da terra e desfaz-se
em podridões: então as raízes começam a sugar e a comer: a podridão
transforma-se em seiva; a seiva sobe pelos troncos, estende-se pelos ramos,
palpita selvagemente dentro da árvore, engrossa, fecunda, arredonda-se nas
exuberâncias dos gomos, e abre-se depois em folhagens, em florescências e em
frutos: e o corpo transformado vê outra vez o sol, as grandes poeiras, e sente
os orvalhos, e ouve as cantigas dos pastores, e vive sereno, repousado, na
floresta imensa.”
(“Os Mortos São Felizes” –
Prosas Bárbaras
,
Feito esse preâmbulo, meu
pensamento foi: como posso anular os rituais todos e fazer alguma coisa pela
Ciência que eu aprendi desde cedo a respeitar. Porque dar um material precioso
para os bichos comerem? Sem a poética de Eça de Queiroz, são as bactérias e
vermes os primeiro no banquete. E o festim continua por um bom tempo. Isso sim
é mórbido.
A primeira vez que pensei
nisso objetiva e concretamente foi quando visitei Dirce, uma amizade de anos
nas nossas Musculações. Mulher simples, sem muitos conhecimentos mais
profundos, intuitivamente percebeu todo esse contexto. Já estava quase terminal
quando a vi, mas ela já tinha certeza do que queria: doar seu corpo para
estudos.
Sem que tenha sido um
momento especial, resolvi que era tempo de formalizar esse desejo meu de também
doar meu corpo para estudos. Procurei a instituição que está mais perto de mim:
Departamento de Anatomia do ICB – USP. Conversei com Thelma Parada, não para
que ela me convencesse (eu já tinha certeza do que queria e sem conflitos), mas
para trocar informações que eu ainda não tinha. Recebido os formulários tive
que preenchê-los, reconhecer firmas das testemunhas (meu filho e netos). Agora
está tudo pronto
Entregues os papeis fica
determinado meu desejo pos-mortem: sem velório, sem enterro. Deixo aos
familiares mais próximos, de consolo umas duas horas de velório particular com
as músicas que já separei e deixo como CD junto com os documentos.
No dia 01 de outubro, com os
documentos requeridos fui ao IBC e entreguei formalmente, os documentos todos.
Fiquei com três cópias devidamente colocadas em uma pasta amarela identificada
que será colocada em local conhecido e acessível.
Fica assim formalizado e
oficializado esse desejo meu que deve ser respeitado não sei quando, mas
certamente um dia qualquer.
Texto escrito por Neuza
Guerreiro de Carvalho em 04 de outubro de 2013
“Ao
te curvares com a rígida lâmina de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido,
lembra-te que este corpo nasceu do amor de duas almas, cresceu embalado pela fé
e pela esperança daquela que em seu seio o agasalhou”. Sorriu e sonhou os
mesmos sonhos das crianças e dos jovens.
Por
certo amou e foi amado, esperou e acalentou um amanhã feliz e sentiu saudades
dos outros que partiram.
Agora
jaz na fria lousa, sem que por ele se tivesse derramado uma lágrima sequer, sem
que tivesse uma só prece.
Seu
nome, só deus sabe.
Mas
o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir à humanidade. “A
humanidade que por ele passou indiferente” (Rokitansky,
1876)
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Abraço.