EU

Não corri pelos campos, não me criei numa fazenda, não tive meu rio para brincar, banhar. Também não morei em cidade do interior, onde tudo tem seu jeito, tudo é mais humano, todos se conhecem e tudo é mais puro. Não me marcou nenhuma igrejinha interiorana, nem amigos de brincadeiras de rua. Não tive quintal com árvores para subir, nem frutas para serem apanhadas no pé. Não tive a liberdade de andar sozinha pelas ruas, como só acontece em cidades pequenas. Não tive a oportunidade de brincar mais livremente, mais sadiamente e aproveitar manhãs de sol douradas, que só se percebe quando os horizontes são largos.

Em vez disso, sempre morei na cidade de São Paulo, em lugares feios, pobres, mas não paupérrimos, humildes, de imigrantes às vezes tristes com saudades da pátria distante, às vezes alegres como é seu natural. Horizontes estreitos, ruas sujas, gente aos montes em pequenos espaços. Mas uma cidade que eu amo e na qual vivo até hoje.

Tive família paterna e materna, não excepcionalmente grande, mas o suficiente para me sentir enraizada. Primeira sobrinha, primeira neta do lado paterno, fui bajulada, endeusada, paparicada demais pelas tias.. Com elas aprendi os versinhos de infância, as “batatinha quando nasce” da vida. Avô paterno não se ligava muito a mim, por eu ser mulher. Avó mais atenciosa teve que dividir o carinho com os outros netos, e não me sobrou tanto quanto eu gostaria. Do lado materno, poucas atenções. Não fui a primeira, nem a última neta. Fiquei no “meio”, diluída, meio esquecida.

Nasci em Abril, “o claro mês das garças forasteiras” de Vicente de Carvalho. Em 1930, ano conturbado, de revolução, de cavalos amarrados em obelisco.

Minha infância sempre foi em casa partilhadas com estranhos, em bairros fabris, dinheiro contado, vida simples, oscilando entre o ruim e o menos ruim. Tempos de cozinhar com carvão, andar de bonde, esperar por um ganho “no bicho” para comprar roupa nova. Tempos dos colchões de palha pacientemente afofados a cada dia, ninho predileto de percevejos. “Casinha” nos fundos, penicos, barbas com navalha, compra em “vendas” para o dia a dia.

Ainda tenho na memória olfativa o cheiro de chão lavado aos sábados, de madeira molhada; o cheiro de pão da padaria parede e meia com a casa e “sinto” o terror e repugnância das baratas habitantes do quentinho do forno, que faziam “passeios” pela casa.

Meus tempos de primeiras letras foram com professoras “de casa” e das segundas letras em grupos escolares. Tempos de primeiras perdas das muitas que se seguiram: avô e irmã. Lembranças das moedas de “quatrocentão” deixadas cair “sem querer” pelo pai, para os doces da padaria da esquina.

Sonhei os primeiros sonhos de menina, com vestidos improvisados com restos de tule e colar de contas azuis, multifacetado a refletir raios de sol, enfeitando o ambiente. Era a “bailarina” com imagem multiplicada nos espelhos angulares dos “psichês” das tias.

Meus primeiros ídolos foram os corredores das primeiras corridas de automóvel: Pintacuda e Elenice. Ouvi e me envolvi com as primeiras novelas de rádio, com mocinhos e vilões, e tramas maniqueístas.
Comecei a estudar por prazer e fiz disso a prioridade da minha vida.

Mudei de status quando entrei para o ginásio. Outro ambiente, amigas de muitos lugares, novidades e um mundo se abrindo com novos conhecimentos. Um latim que ficou para sempre marcado com o Hino Nacional em latim cantado na formatura. Um francês lembrado pelas primeiras estrofes da “”Marselhesa”, com um professor de francês com forte sotaque português de Portugal. Primeiros poetas conhecidos, primeiros livros lidos. As ciências me espionando e já me conquistando. Um orfeon que quebrava a seriedade das outras matérias.

Vivenciei uma guerra que quase não foi nossa, mas se fez sentir no pão de macarrão, nos blackouts rigorosos, no gasogênio horroroso, nas perseguições injustas que afastaram amigos. Tive patriotismo aumentado e exacerbado com hinos, canções e poesias nacionalistas. E a sensação captada lá no fundo da memória, ainda que fugidia, do final da guerra.

A música entrou na minha vida com a visão do primeiro piano, já pelos 13, 14 anos, e com ela agora outro ídolo na figura de Chopin, com seu romantismo apropriado aos sonhos de menina moça. A música continuou através de minha vida como um complemento emocional importante.

Tempos de caminhar sempre para frente estudando, estudando. É o meu objetivo, meu cotidiano. Estudo compulsoriamente. Sem grandes problemas existenciais, sou a “certinha”, a estudiosa.

Subi mais um degrau, agora para a Universidade. Ambiente mais culto, amigos diferentes em cultura, classe, educação, atitudes, comportamentos. Mas, não sofro influências maiores. Quatro anos entre sapos, minhocas, baratas, drosófilas. Emoções sentimentais? Nenhuma. Atração sexual? Não percebo. Sou um ser único, individual, acostumada a viver por mim mesma e para mim mesma. Namorado? Nenhum. Nem ameaças. Programas mais ousados? Nem pensar. Estão fora da minha formação e do meu contexto familiar.

Na vida, subo para um meio melhor, mais bonito e confortável, numa seqüência de casas compartilhadas, casas pessoais melhorando sempre, até uma verdadeira “mansão” para nossos padrões. Modernismos presentes e aumento de auto-estima. Não durou tempo suficiente para que eu me acostumasse. A realidade se fez presente, o trabalho necessário me chamou. O primeiro trabalho foi num patamar cultural e intelectual melhor: aulas em um cursinho. Um dia...

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