MEMORIAS DE UM AUTOMÓVEL - variação 2

Sou um automóvel velho, enferrujado, amassado, desbotado. Ladeado por outros nas mesmas condições, aguardo meu final definitivo em um ferro velho qualquer, de uma cidade qualquer.

Nasci em 1973 das entranhas da “mãe” de muitos outros iguais a mim, a General Motors. Recebi o nome pomposo de Chevrolet Opala. Nas vitrines de uma distribuidora, ostentava orgulhoso a minha cor de abóbora.

-Brrrrrrr. Cor de Abóbora?
- Abóbora sim. A cor da moda. Visível de longe, visível na estrada mesmo em cerração, tinha uma dignidade visual.

Potencia? 140 hp, 4,1 litros. Um motor e tanto. Beberrão de gasolina sim, mas o compensava pela força, pelo torque, pela segurança.

Tenho minhas memórias, um tanto confusas porque já estou na reta final. Misturo tudo, não sei dividir o tempo em unidades cronológicas, mas lembro de fatos muito interessantes.

Ainda na loja, me perguntava: Aonde será que eu vou parar? Que família vou servir? Meu estofamento novinho, ainda cheiroso temia que crianças pequenas deixassem rolar mamadeiras, subissem nos bancos de sapatos sujos. Temia que motoristas descuidados me raspassem, amassassem, destruíssem.

Lembro-me bem do dia que foram me buscar. Tardinha, sol se pondo, família esperando com ansiedade. Cheguei, abafei, fui examinado, acariciado, adotado. Família de gente já adulta, me deixou mais calmo. Parece que não havia crianças. Vinha substituir outro “irmão” Chevrolet, amarelinho discreto, mais fraquinho.

Agora, além de Chevrolet Opala, me foi dado também um número de placa pelo qual fiquei devidamente identificado.

Minhas lembranças agora me levam para um dia do começo dos anos 80, 0 bom espaço que eu oferecia – tinha cambio na direção e por isso disponibilizava três lugares na frente, com os três de trás, dava para acomodar seis pessoas. E o casal meu dono, adultos ainda jovens, estavam levando para passear os quatro pais. Somando as idades de todos dava um “mundo” de anos.

Viagem curta, a cada posto paravam, e começava a aventura de descer do carro; um trabalhão enorme. Um deles era ranzinza, rabugento, reclamante, machão, que exigia ir à frente. Eu só tinha duas portas, de modo que era esperar que ele saísse, sem a menor pressa, para que os outros três também saíssem. O outro pai felizmente era paciente, não reclamava e achava tudo bom. O contraponto. Das mulheres, uma era uma doce senhora, já cega há algum tempo. Custava para se orientar, subia pelo banco, saia e depois voltava e a muito custo conseguiam tirá-la do carro. Felizmente a outra era auto-suficiente e ajudava bastante.

- Pai, volte. Esse é o banheiro feminino.

E o pai não voltava porque já não ouvia bem, nem se deu conta de nada, e teve que ser retirado quase á força porque argumentava:

- O que é que tem? Já sou velho e ninguém vai estranhar minhas condições. É tudo igual.

Enquanto eu descansava, lá no restaurante as confusões continuavam, ninguém se entendia, cada um queria uma coisa diferente... E quando voltavam, já estavam mal humorados.

Foram muitas viagens iguais a essa, e por causa das confusões e situações recebi até um apelido: Gerontomóvel. Porque só carregava velhos.

Também dormia ao relento, porque a garage coberta tinha sido transformada em quarto para acomodar o segundo par de velhos que chegaram para morar um tempo. E então, também a casa onde eu morava era chamada de Gerontocasa, porque abrigava muitos velhos.

Mas, nem sempre foi assim. Tive meus momentos de glória quando as viagens eram só do núcleo familiar, os pais meus donos e os filhos jovens.

E aí, com minha potencia podia carregar um trailer muito simpático, com o qual fomos conhecer vários lugares do Brasil. Fomos à Baía, fomos para o Sul, e tantos outros lugares. Não era fácil carregar mais aquele peso, mas eu dava conta.

Susto mesmo eu passei na Baía, acho que foi por volta de 1975. Eu ainda era bem novo.
Foi quando nos aventuramos por estradas secundárias e quisemos conhecer Santo Amaro, a terra de Caetano Veloso. Para um tico de cidade, um trabalhão enorme. A ponte de ligação tinha bitola menor que a minha e fui “saracoteando” quase me desconjuntando e ainda com medo que um trem aparecesse e nos atropelasse. E para chegar à estrada principal tinha-se que subir um morro cheio de pedras, com curvas acentuadas, com barrancos e casas dos lados. Foi aí que eu mostrei realmente meu valor, pois fui em frente, consegui vencer com o motor reclamando, mas subindo e o trailer corcoveando como potro chucro.

Que susto!!! Se eu falhasse, voltaria trailer, carro, quatro pessoas de dentro do carro, e levaríamos junto pessoas de fora, que atropelássemos na queda.

Quando paramos na estrada principal e eu esfriei meu motor, o pessoal foi ver como estava o interior do trailer, depois de tanta chacoalhação. Um caos. As portas dos armários tinham se aberto, os potes de pó de café derramado tudo, os potes de macarrão estrelinha quebrados e macarrãozinho por toda parte. Anos depois ainda havia estrelinhas pelos cantinhos.

Bom mesmo era quando íamos a festas. Aí me lavavam bem, lustravam, perfumavam e eu fazia boa figura.

Viajei muito para Pouso Alegre levando mil e uma coisas. Ia para a casa da filha da dona que havia casado e morava em um sítio, no meio de uma fazenda. Amassei muito barro e muitas vezes, mesmo com a minha potência não conseguia subir uma ladeira escorregadia e tinha que ser puxado por trator. Que vergonha!!! Já não valia tanto.

Fui ficando mais velho. Bebia muita gasolina. A gasolina ficava mais cara. Urgia passar para um “irmão” mais econômico. E fui ficando no sítio, na fazenda porque era grande, ainda meio forte e, sem a tampa do porta malas carregava latões de leite do sítio para a cidade. Decadência total. De carro de passeio a transportador de leite. Fiquei com a família até 1983.

Fui passando para pessoas cada vez menos cuidadosas, fui mal amado, amassado e nunca consertado, até que não valia mais nada e fui abandonado. E, para não atrapalhar mais, me recolheram do relento e me trouxeram para este cemitério para aguardar o desmanche definitivo.

Que saudades dos meus tempos de Gerontomóvel.

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